A literatura indígena é um conhecimento ancestral

Por Edson Brito - Kayapó


As editoras e os leitores brasileiros estão redescobrindo o Brasil, ou pelo menos estão descobrindo histórias, gestos e ações pouco conhecidas na literatura nacional, graças ao protagonismo de indígenas que entram em cena neste campo. Nós, indígenas, temos nas mãos a oportunidade de contribuir na revisão da história




    É interessante observar que a referida “redescoberta do Brasil”, ocorre num momento delicado, sendo uma ação dissonante em relação ao desencantamento do mundo. É evidente que está em marcha uma aguda crise planetária de valores morais, econômicos e sócio-ambientais, e é nesse contexto que emerge com visibilidade a literatura indígena escrita no país, materializando no mundo real o desejo fictício do poeta Caetano Veloso que anuncia que Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante/De uma estrela que virá numa velocidade estonteante/E pousará no coração do hemisfério sul, na América, num claro instante (...). O mundo precisa conhecer nossas experiências, as nossas conquistas e nossas formas de viver, inclusive para que não se tenha dúvida sobre nossa sabedoria ancestral.
              Está claro que os povos indígenas brasileiros estão vivos, ativos e reativos, por mais que a história oficial e a própria literatura nacional tenham silenciado essa condição. A incipiente literatura indígena escrita é a prova cabal de que estamos em movimento e resistimos historicamente às adversidades: temos muitas histórias para contar.
              Por esses e outros motivos é importante que a literatura indígena, particularmente na sua forma escrita, se difunda em todos os meios sociais, nas escolas, nos lares, atingindo pessoas de todas as idades. É uma forma de demonstrarmos nossa diversidade de hábitos/tradições, mostrando nossa sabedoria, inclusive na maneira equilibrada de lidar com o meio natural, os animais e os outros.
              No caminho a percorrer, devemos ter clareza sobre os significados da literatura indígena e suas implicicações. Inicialmente, é bastante óbvio afirmar que a literatura indígena seja uma produção de pessoas que se identificam como indígenas, mas é uma definição insuficiente, o que nos coloca na responsabilidade de definirmos um norte para o que estamos denominando de literatura indígena, já que estamos nos dispondo a abrir o diálogo com amplos setores da sociedade como as universidades, a Academia Brasileira de Letras, centros culturais e outras instituições.
              Na introdução desta coletânea de textos, o parente escritor Daniel Munduruku destacou com muita propriedade vários aspectos que caracterizam a literatura indígena. É importante repetir aqui as suas palavras: “É em função dessa compreensão que temos dado ao fenômeno da Literatura Indígena um status maior do que apenas a escrita. Para os indígenas, a escrita é apenas uma forma simbólica de representação. A dança é outra. O rito é outro. Portanto, compreender a Literatura Indígena é entender, também, que ela não pode estar presa a um conceito apenas. Ela é mais ampla. Mais dinâmica. Mais completa.”
              Para nós, parece estar claro que a escrita é apenas uma das formas de representação simbólica da cultura indígena. Dessas reflexões, surgem algumas questões importante para avançarmos no nosso fazer.
              A literatura indígena na sua expressão escrita pode ser visualizada enquanto convergência de três aspectos: é uma forma de representação da cultura indígena; é também uma forma de redescoberta do Brasil (conforme a nossa ótica) e é uma possibilidade de reencantamento de um mundo em crise. Os três aspectos devem apontar um caminho de valorização/afirmação da cultura dos povos indígenas, desmontando o preconceito histórico a nós atribuido.
              Nesta perspectiva, nós, escritores indígenas, temos mais que uma simples tarefa pela frente, temos um grande compromisso com a nossa história ancestral (talvez seja redundância falar em “história ancestral” indígena), identificando-a com o nosso passado e nosso presente. A literatura indígena escrita pode se transformar numa fonte efetiva de valorização da cultura dos nossos povos, podendo ser recurso didático, tanto nas escolas convencionais quanto nas escolas indígenas diferenciadas.
              As questões acima suscitam o debate sobre objetivos e compromissos que a literatura indígena escrita pode assumir. Temos que dialogar sobre as formas de desfarzer os preconceitos contra os povos indígenas, sobre o repensar a história nacional e sobre a necessidade da nossa produção literária alcançar as escolas das aldeias, talvez até como prioridade.
              Este é um debate salutar, necessário para instrumentalizarmos o que estamos fazendo. É uma discussão que pode indicar uma orientação geral para os escritores indígenas, sem, contudo, produzir uma camisa de força na maneira de escrever e na forma de apresentar a diversidade dos povos indígenas.
 Edson Kayapó

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